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Extrativismos na América Latina

Bruna Viana de Freitas

Compreender extrativismos é um pré-requisito para entender a realidade latino-americana do século XXI, dado seu papel central na definição das dinâmicas políticas e sociais em toda a região (1). A história do extrativismo na América Latina remonta ao período colonial, quando minerais preciosos e outros recursos naturais eram enviados de territórios conquistados para capitais na Europa (2). Embora a organização geopolítica mundial tenha mudado desde então, o papel dos países latino-americanos na economia global ainda se baseia principalmente na extração de recursos naturais e na exportação desses recursos para os mercados internacionais. O investimento estrangeiro que a América Latina recebeu no setor de mineração desde os anos 90 é maior do que qualquer outra parte do mundo (3). Isso é tão marcante que faz com que a orientação à exportação seja um dos critérios que define o conceito de extrativismo para Gudynas:
 
Os extrativismos referem-se a um conjunto particular de apropriações de recursos naturais caracterizados por grandes volumes removidos e/ou alta intensidade, onde metade ou mais são exportados como matéria-prima, sem nenhum ou limitado processamento industrial. (Gudynas, 2016a, p. 14, tradução minha)

Esta trajetória extrativista foi reforçada durante o chamado boom das commodities no início do século 21, que coincidiu com uma onda de governos progressistas assumindo vários países da América Latina (4). A eleição de Hugo Chávez em 1999 na Venezuela foi seguida pela de Néstor Kirchner e Cristina Fernández de Kirchner na Argentina, Evo Morales na Bolívia, Lula da Silva no Brasil, Rafael Correa no Equador, Tabaré Vázquez e José Mujica no Uruguay (5). Apesar de rejeitar a disseminação das políticas neoliberais da década anterior, os governos progressistas surfaram a onda de crescimento econômico possibilitada pelos altos preços das commodities (6). A reprimarização das economias que ocorreu neste momento exigiu a implementação de empreendimentos de mineração significativos e grandes barragens para permitir a exploração de minerais. Com o apoio dos estados nacionais e do Banco Mundial, grandes empresas de mineração globais redirecionaram seus investimentos para a América Latina (7). Os impactos sociais, ambientais, territoriais e políticos desta decisão foram geralmente minimizados ou negados pelos governos progressistas. Em geral, os governos priorizaram o aumento dos gastos sociais e a promoção da inclusão através do consumo (8). Após o fim do boom das commodities, as elites políticas conservadoras e progressistas sustentaram o setor extrativo como a única alternativa possível para alcançar o prometido desenvolvimento das economias latino-americanas (9).

Os impactos causados localmente pela mineração incluem o uso e a poluição da água; o consumo de energia; a poluição do ar e do solo; o dano à biodiversidade; a geração de resíduos que são armazenados em rejeitos; o impacto em meios de vida tradicionais de populações locais; o aumento da violência, do trabalho infantil e do abuso sexual (10). Além dos impactos locais, o extrativismo gera o que Gudynas chama de efeitos derrame, afetando "os significados pelos quais entendemos desenvolvimento, política, justiça, democracia e natureza" (Gudynas, 2016a, p. 15 tradução minha). Entre os efeitos colaterais citados pelo autor estão o afrouxamento das normas ambientais; a alteração dos tipos e usos dos territórios para permitir a mineração; o fortalecimento do discurso de que o setor extrativista é essencial para pagar programas de assistência social, e da ideia de que os danos ambientais e sociais podem ser compensados por pagamento financeiro, levando à consolidação de um Estado compensatório (11).
 
Seja logo na fase de extração ou através de sua inserção em redes globais de comercialização e produção, o setor de mineração é fortemente influenciado por fatores globais (demanda, preços, investimentos), que dependem de um número limitado de influentes atores internacionais. Isso limita a capacidade das comunidades e governos locais influenciarem o setor extrativista (12). O desafio da mudança climática é um exemplo de uma dinâmica global que afeta fortemente os países da América Latina. Segundo estimativas do Banco Mundial, assegurar um cenário de aquecimento global máximo de dois °C, sustentando o atual padrão de consumo global, significaria aumentar até 500% na demanda dos chamados minerais críticos necessários para construir tecnologias de energia limpa e armazenar sua eletricidade (13) - lítio, cobre, grafite, cobalto, níquel e metais de terras raras (14). A concentração geográfica atual dos minerais críticos é maior do que a concentração de petróleo e gás (15).  A América Latina (especialmente Argentina, Bolívia, Brasil, Chile e Peru) representa uma proporção significativa das extrações atuais e das reservas globais de lítio, grafite, níquel e metais de terras raras (16). Apesar disso, as recentes discussões sobre uma transição energética justa muitas vezes limitam-se à recolocação de trabalhadores e comunidades cuja subsistência depende da indústria de combustíveis fósseis (17)
 
Leia mais sobre o aumento da demanda por minerais causado pela transição energética neste post (em inglês). 

Notas
 

  1. Gudynas, 2015

  2. Gudynas, 2015; Svampa, 2019

  3. Vio Gorget & Walter, 2016

  4. Gudynas, 2016a; Svampa, 2019

  5. Gudynas, 2016b

  6. Gudynas, 2016b

  7. Nacif, 2016

  8. Gudynas, 2016b; Svampa, 2019

  9. Svampa, 2019

  10. Amazon Watch & APIB, 2022; Deniau et al., 2021; Marín & Goya, 2021

  11. Gudynas, 2016a

  12. Gudynas, 2015, 2016a

  13. Hund et al., 2020

  14. Deniau et al., 2021

  15. IEA, 2022

  16. O aumento da demanda por minerais será causado principalmente para sustentar tecnologias necessárias para gerar e armazenar energia através de fontes renováveis (painéis solares, turbinas eólicas e redes elétricas), fornecer os materiais necessários para substituir carros convencionais por elétricos, e as baterias necessárias para apoiar a descarbonização do setor de transporte (Deniau et al., 2021).

  17. Bainton et al., 2021

 
Referências

Amazon Watch, & APIB. (2022). Cumplicity in Destruction: How mining companies and international investors drive indigenous rights violations and threaten the future of the Amazon.

Bainton, N., Kemp, D., Lèbre, E., Owen, J. R., & Marston, G. (2021). The energy-extractives nexus and the just transition. Sustainable Development, 29(4), 624–634. https://doi.org/10.1002/SD.2163

Deniau, Y., Herrera, V., & Walter, M. (2021). Mapping Community Resistance to the Impacts of Mining for the Energy Transition in the Americas . https://miningwatch.ca/publications/2022/3/4/mapping-community-resistance-impacts-mining-energy-transition-americas

 

Gudynas, E. (2015). Extractivismos: ecología, economía y política de un modo de entender el desarrollo y la naturaleza (Primera edición). CEDIB, Centro de Documentación e Información Bolivia.

Gudynas, E. (2016a). Extractivismos en América del Sur y sus efectos derrame. La Revista / Boletín Sociedad

Suiza Americanistas, 13–23.

Gudynas, E. (2016b). Beyond varieties of development: Disputes and alternatives. Third World Quarterly, 37, 721–732. https://doi.org/10.1080/01436597.2015.1126504

Hund, K., Porta, D. la, Fabregas, T. P., Laing, T., & Drexhage, J. (2020). Minerals for Climate Action: The Mineral Intensity of the Clean Energy Transition. www.worldbank.org

IEA, I. E. A. (2022). The Role of Critical Minerals in Clean Energy Transitions . https://www.iea.org/reports/the-role-of-critical-minerals-in-clean-energy-transitions

Marín, A., & Goya, D. (2021). Mining—The dark side of the energy transition. Environmental Innovation and Societal Transitions, 41, 86–88. https://doi.org/10.1016/J.EIST.2021.09.011

Nacif, F. (2016). Un Estado a la medida del extractivismo Las políticas de la «Minería Sustentable» impulsadas en América Latina desde 1990. Integra Educativa. https://ri.conicet.gov.ar/handle/11336/106250

Svampa, M. (2019). Las fronteras del neoextractivismo en América Latina. transcript Verlag / Bielefeld University Press. https://doi.org/10.14361/9783839445266

Vio Gorget, D., & Walter, M. (2016). Marcos normativos e institucionales de la minería en América Latina . https://publications.iadb.org/publications/spanish/document/Marcos-normativos-e-institucionales-de-la-miner%C3%ADa-en-Am%C3%A9rica-Latina.pdf

Sobre a autora

Bruna Viana é facilitadora de processos participativos, com experiência em apoiar organizações de diferentes setores a criar colaboração entre atores relevantes e tomar decisões que considerem todos os seus impactos. Chevening Scholar, mestre em Power, Participation and Social Change no Institute of Development Studies - University of Sussex, Reino Unido. Bruna também é Amani fellow, tendo cursado o diploma de pós-graduação em Social Innovation Management do Instituto Amani. 

Sobre este site

Neste site, publico histórias sobre projetos relevantes nos quais estive envolvida em minha trajetória, além de conteúdos - reflexões, proposições e histórias - que julgo poderem inspirar olhares mais conscientes e sustentáveis sobre as formas como nos relacionamos, produzimos, consumimos, vivemos. Desejo que o que me alimenta o pensamento possa gerar ideias em você também. Se algo que você encontrar aqui te der vontade de conversar mais, me escreva em brunaviafre@gmail.com.

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