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Pesquisa-ação: investigar a realidade coletivamente gerando mudanças

Bruna Viana de Freitas

Pesquisa-ação é um processo de investigação e transformação da realidade feito pelas próprias pessoas - ou em estreita colaboração com as pessoas - que experienciam determinado contexto que se deseja conhecer melhor e transformar. Não é um método único, mas uma família de práticas que compartilha da intenção de criar “comunidades participativas de investigação nas quais as qualidades de engajamento, curiosidade e questionamento são trazidas à tona em questões práticas significativas” (Reason & Bradbury-Huang, 2007, p. 1 tradução minha) para as pessoas envolvidas.  


Em abordagens de pesquisa-ação, a distinção tradicional entre pessoas pesquisadoras e pessoas "sendo pesquisadas" é ressignificada. Não se trata de um grupo externo de pesquisadores se relacionando com pessoas que experienciam determinada situação para fazer um diagnóstico, consultar preferências sobre uma lista de soluções pré-determinadas ou opinar sobre um projeto já construído. Mas sim de um processo em que os participantes se engajam, ao mesmo tempo, como sujeitos e co-pesquisadores.


Isso não significa que todos do grupo tenham o mesmo papel, conhecimento, envolvimento ou influência sobre a pesquisa. É provável que alguns dos participantes sejam iniciadores da pesquisa, seja porque são a ponte com a origem do financiamento da iniciativa, seja porque foram as primeiras pessoas motivadas, seja porque têm conhecimento sobre esse processo participativo ou ainda por outros motivos. Ao invés de ocultar essas diferenças de poder, conhecimento, recursos e contribuição, a pesquisa-ação propõe uma abordagem reflexiva e crítica sobre essas questões, de forma que os participantes se engajem numa análise sobre suas próprias posicionalidades em relação àquele contexto e grupo (1). Desta forma, co-pesquisadores podem agir mais criticamente em relação à realidade em questão.


Essa relação de estreita colaboração entre os participantes, que são pessoas conhecedoras da realidade que se deseja transformar, contribui para que, nesta abordagem, ação e investigação caminhem juntas. A pesquisa não é uma etapa inicial que gera um relatório no qual posteriormente atores específicos irão se basear para tomar decisões. Por meio de ciclos de ação e reflexão, mudanças já acontecem ao longo do processo: nas pessoas envolvidas, nas relações entre elas, por meio de ações realizadas pelo grupo ou de forma mais sutil no sistema como um todo.


Reason e Bradbury-Huang (2007, p. 4 tradução minha) definem pesquisa-ação como

 

um processo participativo preocupado em desenvolver conhecimento prático na busca de propósitos humanos que valham a pena. É um processo que busca reunir ação e reflexão, teoria e prática, em participação com outros, na busca de soluções práticas para questões que geram preocupação atual para as pessoas e, de modo geral, contribuem com o florescimento de indivíduos e suas comunidades. (2)


Não há um formato único ou correto para se realizar uma pesquisa-ação, mas entendo que alguns valores e princípios norteiam esta prática:

 

  • É um processo comprometido com a justiça social, que se propõe a desafiar estruturas de poder pré-existentes em direção a maior democracia. (3)

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  • Teoria e ação caminham juntas: conhecimento é gerado de forma participativa no processo de investigação, que combina ação e reflexão. Assim, a validade de teorias é testada por sua aplicabilidade para resolver problemas práticos que influenciam a vida das pessoas. (4) 

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  • Não se busca encontrar uma verdade objetiva e aceita por todos. Compreensões alcançadas pelo grupo em determinado momento são provisórias e serão constantemente desafiadas por novas experiências ao longo do processo. (5)

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  • A diversidade no grupo é valorizada e a contribuição de todos é levada à sério. (6) 

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  • Valoriza-se o conhecimento, as experiências e habilidades das pessoas para resolver os problemas que experienciam. São as pessoas que vivem a realidade na qual a pesquisa acontecerá que definirão o foco da investigação – um problema real e significativo para si. (7)

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  • O conhecimento e os resultados gerados pela pesquisa-ação devem contribuir para que as pessoas que experienciam um problema passem a ter melhores possibilidades de enfrentá-lo. Serão elas as melhores posicionadas para julgar se uma solução é útil ou não. (8)

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  • É uma abordagem voltada para gerar mudança com os outros, e não nos outros. (9) 

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Essa não é uma lista exaustiva, mas sim uma seleção de pontos norteadores que orientam minha prática como co-pesquisadora. Abaixo, exploro em mais detalhes alguns desses pontos. A lista completa de referências segue ao final do texto.


Origens da pesquisa-ação 


Há uma diversidade de campos de estudo e contextos a partir do início do século XX que podem ser relacionados com as bases da pesquisa-ação (10). Entre elas, está a pedagogia crítica de Paulo Freire, que defende que as pessoas tornam-se mais capazes de transformar situações de opressão quando se engajam em processos emancipatórios de análise crítica e reflexão sobre a realidade em que vivem (11)


Essa diversidade de bases que levam à pesquisa-ação é uníssona em se contrapor a algumas características das ciências sociais convencionais, marcadas por uma visão positivista do conhecimento: a busca por simplificar a realidade em abstrações generalistas, a procura por verdades objetivas, a separação entre pensamento e ação, a intenção de generalizar resultados e uma visão que assume neutralidade da pessoa pesquisadora. 


Em contraste, a pesquisa-ação é especialmente adequada para contextos complexos, valoriza os diversos tipos de conhecimento e experiências subjetivas das pessoas, está comprometida com ação que transforma a realidade, é contextual, e assume, não só a posição de participante (não neutra) da pessoa pesquisadora, como convida os participantes (que são simultaneamente sujeitos e co-pesquisadores) a refletirem criticamente sobre seus valores e visões em relação à pesquisa. (12)


Propósito da pesquisa-ação 


A maior parte dos pesquisadores alinhados a esta abordagem entende pesquisa-ação como uma prática comprometida com valores de justiça social, que questiona desigualdades de poder e contribui para melhorar a condição de vida de pessoas vulnerabilizadas. (13)


Dentro de organizações públicas e privadas, esta abordagem vem sendo aplicada para fins mais específicos de resolução de questões que influenciam o desenvolvimento organizacional e os resultados alcançados por aquela organização. Ainda que seja uma abordagem adequada para envolver pessoas que trabalham juntas na resolução de problemas relevantes para si, a pesquisa-ação não é apenas uma metodologia de engajamento. Ou seja, esse processo participativo não visa comprometer pessoas com soluções previamente tomadas por um grupo mais restrito, possivelmente fortalecendo o status quo e as relações de poder pré-existentes. O propósito da pesquisa-ação é ser uma metodologia de transformação social, não de manipulação.


Um propósito mais amplo de pesquisa-ação é contribuir através deste conhecimento prático para o aumento do bem-estar - econômico, político, psicológico, espiritual - das pessoas e comunidades humanas, e para uma relação mais equitativa e sustentável com a ecologia mais ampla do planeta da qual somos parte intrínseca. (Reason & Bradbury-Huang, 2007, p. 4 tradução minha) (14)


Processo da pesquisa-ação: como acontece
 

O processo de pesquisa-ação leva tempo – pode se desenvolver ao longo de anos. Grupos de co-pesquisadores engajam-se em ciclos de ação (testando proposições e mudanças na realidade em investigação) e reflexão (refletindo criticamente sobre suas ações e aprendendo com o processo) (15). Logo, iniciativas baseadas em pesquisa-ação requerem flexibilidade para que decisões e ações possam ser testadas na medida em que o grupo gera conhecimento, experimenta e reflete sobre próximos passos. 


Não há apenas uma forma de realizar esse processo participativo: pesquisa-ação é “uma família de práticas de investigação viva” (Reason & Bradbury-Huang, 2007, p. 1 tradução minha). Praticantes devem tomar decisões sobre os métodos mais adequados ao contexto do grupo e ao momento da pesquisa. A intenção é criar condições para que, continuamente, reflexão e ação se retroalimentem. Assim, ao mesmo tempo em que provoca mudanças nos participantes e na realidade, o processo permite que o grupo crie sentido sobre o que está sendo aprendido e faça ajustes ao longo do tempo.


Pesquisa-ação é, antes de tudo, uma forma de "manter a conversa acontecendo". Os métodos de pesquisa-ação visam abrir horizontes de discussão, para criar espaços de reflexão coletiva nos quais novas descrições e análises de situações importantes podem ser elaboradas como base para novas ações. Isto é o que entendemos por aprendizagem cogenerativa. 
(D. Greenwood & Levin, 2007b, p. 16 tradução minha) 
(16)


A relação entre os co-pesquisadores
 

A depender do formato da pesquisa-ação, a distinção entre pesquisadores “de dentro” (que fazem parte daquele contexto previamente) e pesquisadores “de fora” (que chegaram para realizar a pesquisa) pode ser mais ou menos evidente. Em co-operative inquiry (investigação cooperativa), um dos métodos de pesquisa-ação, esta distinção tende a ser menos evidente, pois nesse caso um grupo de pessoas que já experienciam uma questão em comum decidem engajar-se nesse processo de investigação coletiva. Ainda assim, pode haver diferenças de papéis, hierarquia ou conhecimento sobre a abordagem entre os co-pesquisadores.

 

Em outros formatos de pesquisa-ação é possível que essa distinção seja mais nítida. Isso acontece, por exemplo, quando um projeto tem recursos para realizar uma abordagem de pesquisa-ação em determinado contexto e desloca pesquisadores-iniciadores, com conhecimento desse processo participativo, para iniciar o processo e convidar co-pesquisadores locais. 


Em todo os casos, na pesquisa-ação reconhecemos e valorizamos a diversidade no grupo, ao invés de buscar atenuá-la. Alguns participantes podem ter mais conhecimento prático, experiencial e histórico sobre o contexto em questão; outros podem trazer contribuições mais teóricas e proposicionais; enquanto outros já tenham desenvolvido mais habilidades de sustentar o espaço comunicativo que sustenta esse processo participativo. Essa fusão de contribuições gera conhecimento e ação. Independente do perfil de cada pessoa e dos papéis que cada uma realiza no processo, nenhum co-pesquisador é considerado um ator neutro, objetivo ou distante. 


O status óbvio de participante que qualquer cientista social tem em qualquer processo de pesquisa é plenamente reconhecido na pesquisa-ação e é tratado como um recurso para o processo. A construção de novos conhecimentos é construída a partir da premissa deste compromisso mútuo.
(D. J. Greenwood & Levin, 2007, p. 10 tradução minha) 
(17)

 

Resultados em pesquisa-ação
 

Praticantes de pesquisa-ação estão comprometidos em causar mudança como resultado da pesquisa. Ao se engajar em uma pesquisa-ação, co-pesquisadores devem refletir juntos sobre que tipo de transformação querem gerar com esta empreitada. Ou seja, como saberemos dizer, ao final, se alcançamos nossos objetivos? O que entenderemos por "ação" nesta jornada? Podem ser objetivos de uma pesquisa-ação, por exemplo, aprofundar conhecimento sobre uma realidade, criar parcerias para atuar em determinado contexto, resolver um problema prático, questionar práticas e valores estabelecidos… Em ciclos de reflexão e ação, o caminho, e por que não dizer, os objetivos, são ajustados de acordo com o que parece ser útil e significativo para os co-pesquisadores naquele momento. 


Independentemente das peculiaridades de cada processo, é essencial que o conhecimento gerado possa ser usado pelos participantes para lidar com questões importantes para si: “a credibilidade e validade do conhecimento em pesquisa-ação dependem da medida em que as ações que surgem do processo resolvem problemas (têm funcionalidade) e aumentam o controle dos participantes sobre suas próprias situações" (D. Greenwood & Levin, 2007a, p. 8 tradução minha) (18). Mas, reiterando o valor da diversidade para pesquisa-ação, não é necessário que o grupo alcance consenso sobre o conhecimento gerado – a pluralidade de perspectivas é bem-vinda também na análise e na reflexão sobre os resultados alcançados(19).


Bom o suficiente para começar?
 

Pesquisa-ação não é um processo ideal, acontecendo como a economia neoclássica em um ambiente de informação perfeita, ceteris paribus, e outras condições absurdas inexistentes. É um processo real, acontecendo em contextos de tempo real, com pessoas reais, e tem todas as contingências, defeitos e exaltações de qualquer processo humano.
(D. Greenwood & Levin, 2007b, p. 11 tradução minha) 
(20)


É improvável que, em um processo de pesquisa-ação, ajustes de rota importantes não aconteçam ao longo do percurso. Se os co-pesquisadores estão atentos às necessidades emergentes do contexto em que estão inseridos, comprometidos a questionarem suas próprias suposições e posições, abertos a refletir sobre as ações e o conhecimento gerado, muito provavelmente a questão inicial, os resultados almejados, os métodos ou a formação do grupo passarão por ajustes. Assim, não faz sentido esperar as condições “perfeitas” para iniciar uma pesquisa-ação. Acredito que ter em mente os princípios que guiam esta prática, cultivar a qualidade da sua presença e sua capacidade de reflexão crítica sobre si e sobre o processo são ingredientes valiosos para começar.

 

Notas

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  1. D. Greenwood & Levin, 2007a, 2007b

  2. Texto original em inglês: “action research is a participatory process concerned with developing practical knowing in the pursuit of worthwhile human purposes. It seeks to bring together action and reflection, theory and practice, in participation with others, in the pursuit of practical solutions to issues of pressing concern to people, and more generally the flourishing of individual persons and their communities.” (Reason & Bradbury-Huang, 2007, p. 4)

  3. D. Greenwood & Levin, 2007b

  4. D. Greenwood & Levin, 2007a

  5. D. Greenwood & Levin, 2007b

  6. D. Greenwood & Levin, 2007a

  7. Brydon-Miller et al., 2016

  8. Brydon-Miller et al., 2016; D. Greenwood & Levin, 2007b

  9. Reason & Bradbury-Huang, 2007

  10. “The origins of action research are broad: they lie in the work of Lewin and other social science researchers around at the end of the Second World War; in the liberationist perspective that can be exemplified in Paulo Freire (1970); philosophically in liberal humanism, pragmatism, phenomenology, critical theory, systemic thinking and social construction; and practically in the work of scholar-practitioners in many professions, notably in organization development, teaching, health promotion and nursing, and community development both in Western countries and in the majority world.” (Reason & Bradbury-Huang, 2007, p. 3)

  11. Freire, 1970; Reason & Bradbury-Huang, 2007

  12. Brydon-Miller et al., 2016; D. J. Greenwood & Levin, 2007

  13. Brydon-Miller, 2008; Reason & Bradbury-Huang, 2007

  14. Texto original em inglês: “A wider purpose of action research is to contribute through this practical knowledge to the increased well-being – economic, political, psychological, spiritual – of human persons and communities, and to a more equitable and sustainable relationship with the wider ecology of the planet of which we are an intrinsic part.” (Reason & Bradbury-Huang, 2007, p. 4)

  15. Reason & Bradbury-Huang, 2007

  16.  Texto original em inglês: “AR is, first and foremost, a way of “keeping the conversation going.” AR's methods aim to open horizons of discussion, to create spaces for collective reflection in which new descriptions and analyses of important situations may be developed as the basis for new actions. This is what we mean by cogenerative learning.” (D. Greenwood & Levin, 2007b, p. 16)

  17.  Texto original em inglês: The obvious participant status that any social scientist has in any research process is fully acknowledged in AR and is treated as a resource for the process. The construction of new knowledge is built on the premise of this mutual engagement. (D. J. Greenwood & Levin, 2007, p. 10 tradução minha)

  18. Texto original em inglês: “the credibility-validity of AR knowledge is measured according to whether actions that arise from it solve problems (workability) and increase participants' control over their own situations” (D. Greenwood & Levin, 2007a, p. 8).

  19. D. Greenwood & Levin, 2007b

  20. Texto original em inglês: “AR is not an ideal process, happening like neoclassical economics in an environment of perfect information, ceteris paribus, and other absurd nonexistent conditions. It is a real process, happening in real-time contexts with real people, and it has all the contingencies, defects, and exhilarations of any human process.” (D. Greenwood & Levin, 2007b, p. 11)

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Referências 

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Brydon-Miller, M. (2008). Ethics and Action Research: Deepening our Commitment to Principles of Social Justice and Redefining Systems of Democratic Practice1. The SAGE Handbook of Action Research, 199–210. https://doi.org/10.4135/9781848607934.N19

 

Brydon-Miller, M., Greenwood, D., & Maguire, P. (2016). Why Action Research?: Http://Dx.Doi.Org.Ezproxy.Sussex.Ac.Uk/10.1177/14767503030011002, 1(1), 9–28. https://doi.org/10.1177/14767503030011002

 

Freire, P. (1970). Pedagogia do oprimido (17a. ed). Paz e Terra.

 

Greenwood, D. J., & Levin, M. (2007). An Epistemological Foundation for Action Research In: Introduction to Action Research An Epistemological Foundation for Action Research Introduction to Action Research. Introduction to Action Research, 55–75.

https://dx.doi.org/10.4135/9781412984614

 

Greenwood, D., & Levin, M. (2007a). Introduction to Action Research. SAGE Publications, Inc. https://doi.org/10.4135/9781412984614

 

Greenwood, D., & Levin, M. (2007b). Knowledge Generation in Action Research: The Dialectics of Local Knowledge and Research-Based Knowledge. In Introduction to Action Research (pp. 103–114). SAGE Publications, Inc. https://doi.org/10.4135/9781412984614.N7

 

Reason, P., & Bradbury-Huang, H. (2007). Introduction. In The SAGE Handbook of Action Research : Participative Inquiry and Practice (pp. 1–10). SAGE Publications. http://ebookcentral.proquest.com/lib/suss/detail.action?docID=1046523

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Sobre a autora

Bruna Viana é facilitadora de processos participativos, com experiência em apoiar organizações de diferentes setores a criar colaboração entre atores relevantes e tomar decisões que considerem todos os seus impactos. Chevening Scholar, mestre em Power, Participation and Social Change no Institute of Development Studies - University of Sussex, Reino Unido. Bruna também é Amani fellow, tendo cursado o diploma de pós-graduação em Social Innovation Management do Instituto Amani. 

Sobre este site

Neste site, publico histórias sobre projetos relevantes nos quais estive envolvida em minha trajetória, além de conteúdos - reflexões, proposições e histórias - que julgo poderem inspirar olhares mais conscientes e sustentáveis sobre as formas como nos relacionamos, produzimos, consumimos, vivemos. Desejo que o que me alimenta o pensamento possa gerar ideias em você também. Se algo que você encontrar aqui te der vontade de conversar mais, me escreva em brunaviafre@gmail.com.

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