top of page

Criando espaços de apoio mútuo e empatia em processos participativos

A busca pelo equilíbrio vivo entre os paradoxos da criação de espaços comunicativos

Bruna Viana de Freitas

Pense em pessoas com quem você tem trocas valiosas, que ajudam seu pensamento a ir mais longe, com quem você consegue ter momentos de aprendizado relevantes e sair de uma conversa com a sensação de ter ganhado energia ao invés de perdido. O que contribui para que isso seja dessa forma? E o que acontece quando estamos em grupos com pessoas incríveis, que poderiam trazer contribuições significativas para uma questão, mas em que simplesmente não parece ser possível colaborar? 


O relacionamento entre as pessoas em um grupo e a forma de um grupo trabalhar junto influencia diretamente os resultados alcançados por aquele coletivo. Por isso, em processos participativos de investigação, construção coletiva ou tomada de decisões, é fundamental investir tempo na criação de um espaço comunicativo. 

 

Estes espaços comunicativos seguros são ambientes cuidadosamente pensados de apoio mútuo e empatia nos quais pessoas que, de outra forma, poderiam se sentir ameaçadas por compartilhar seus conhecimentos e experiências com os outros, podem se sentir livres para se expressar. (Pimbert e Wakeford, 2003, citados por Wicks & Reason, 2009, p. 251, tradução minha) (1)


Em processos que reúnem atores com histórica relação de desconfiança entre si ou que estão disputando interesses opostos, certamente haverá limites na possibilidade de se estabelecer um espaço comunicativo. Não é só porque as pessoas se sentaram à mesma mesa que as relações de poder pré-existentes se dissolvem. “Esses espaços de participação não são neutros, mas são eles mesmos formatados por relações de poder que os envolvem e permeiam”  (Cornwall, 2002, citada por Gaventa, 2006, p. 26, tradução minha)(2). E tentar camuflar isso com dinâmicas não funciona. 

Desafios para se estabelecer um espaço comunicativo existirão mesmo em grupos em que as diferenças de poder ou a oposição de interesses não sejam tão marcantes. Neste texto, foco em caminhos para se estabelecer espaços comunicativos em processos participativos em que um grupo se reúne por interesse próprio para investigar uma questão conjuntamente, como na pesquisa-ação.

Criando forma para o espaço comunicativo 

Refletir conjuntamente sobre aspectos que dão forma ao processo participativo, ao início da jornada, contribui para criar compreensão compartilhada sobre a que esse processo se propõe, o que o define e quais são seus limites. Considero isso relevante mesmo para grupos que trabalham juntos com frequência. 


A reflexão individual de cada pessoa sobre sua própria participação é igualmente importante. Ninguém chega a um grupo como uma folha em branco. As experiências e visões de mundo prévias de cada participante influenciam no que o grupo criará junto.

Perguntas para refletir coletivamente em um processo participativo
 

  • O que estamos buscando alcançar com essa relação de colaboração? Que intenções compartilhadas podemos encontrar na soma dos nossos interesses e necessidades individuais com esse processo? 

  • Como queremos nos relacionar enquanto fazemos isso? Que combinados precisamos fazer?

  • De que forma tomaremos decisões nesse grupo?

  • De que papéis precisamos? Como iremos escolher as pessoas que energizam esses papéis? Qual sua autonomia? Por quanto tempo terão essas responsabilidades?

  • Quando e como iremos revisar e atualizar juntos as respostas para essas perguntas, de forma que o processo continue relevante para nós?

É possível que algumas dessas respostas estejam dadas a priori, definidas por um conjunto mais restrito de atores. Nesse caso, é importante ser transparente em relação ao nível de participação que se espera das pessoas - estão sendo apenas informadas sobre decisões que já foram tomadas; consultadas sobre suas preferências para que outras pessoas tomem as decisões finais; têm poder de tomada de decisão ou têm domínio completo sobre o processo? O alinhamento sobre essas questões que dão forma ao processo participativo, bem como sobre o nível de participação para o qual as pessoas estão sendo convidadas, contribui para evitar sensações de frustração ou de manipulação.

Perguntas para refletir individualmente em um processo participativo

  • Quais são os meus valores e posicionamentos individuais em relação a essa questão e como eles influenciam a forma como eu olho para ela?

  • Que pontos dessa reflexão quero ter em minha consciência enquanto participo desse processo? Que pontos eu gostaria de compartilhar com o grupo? 

  • Como participar desse processo altera meus valores e posicionamentos individuais em relação a essa questão?


O papel da pessoa facilitadora na criação de espaços comunicativos: navegando entre paradoxos

 

Um dos papéis que contribui significativamente para a criação de um espaço comunicativo é o da pessoa facilitadora. Essa função também pode ser realizada por mais de um(a) integrante do grupo e possivelmente de forma rotativa. 


As práticas e habilidades necessárias para abrir espaços comunicativos podem ser paradoxais: a pessoa facilitadora precisa cultivar um espaço liminar entre características que, ao primeiro olhar, aparentam estar em oposição (Wicks & Reason, 2009). Apresento em seguida minha compreensão e interpretação sobre os paradoxos de se abrir espaços comunicativos, listados por Wicks e Reason (2009).

 

Os paradoxos da prática de se abrir espaços comunicativos

 

  • Senso de propósito(3): apresentar uma visão de propósito desde o início que seja específica o suficiente para gerar motivação e senso de direção, ao mesmo tempo em que fluida o suficiente para ser transformada na medida em que o processo se desenvolve. 

  • Fronteiras: as fronteiras que definem quem integra o grupo e quem não integra devem ser nítidas o suficiente para gerar senso de identidade, mas porosas o suficiente para que o grupo permaneça em interação constante com o contexto que está explorando. Fronteiras devem servir para definir, não para isolar

  • Participação: convidar intencionalmente as pessoas a se engajarem no processo, mas não impor a participação para pessoas que não desejam ou não estão prontas para participar. A participação deve ser baseada na escolha informada e livre sobre o que significa se engajar com o processo. 

  • Liderança: exercitar liderança o suficiente no início do processo, criando as bases do espaço comunicativo e as condições que permitam que as pessoas participem em seu pleno potencial. Abrir mão da liderança ao longo do processo, de forma a permitir que as pessoas de fato participem em seu pleno potencial.

  • Ansiedade: criar condições para que esse seja um espaço que contenha ansiedade e, assim, permitir que a ansiedade que geralmente decorre de processos de investigação coletiva seja expressa

  • Caos e ordem: o caos é bem-vindo na medida em que abre espaço para a criatividade, para acolher ideias ainda não formatadas e entrar em caminhos que ainda não sabemos para onde levam. A ordem é bem-vinda para criar contorno, relembrar o propósito, checar se os caminhos continuam relevantes.

Nem tanto ao céu, nem tanto à terra: em busca do espaço liminar na facilitação de espaços comunicativos

Mas como habitar paradoxos? Um paradoxo me parece um não-convite, um espaço sem assento. O que seria, então, esse espaço liminar? Quem poderia habitá-lo? Me lembro das sutilezas do papel dos Artistas do Invisível, descrito por Allan Kaplan (2002). Analisando a natureza de processos de mudança e investigando a qualidade do que muda e do que não muda, o autor nos convida a celebrar a energia que surge das tensões entre polaridades e a recusar a inclinação natural de pender para um dos lados.

No jogo entre essas duas forças, o mundo se modifica, cresce e se desenvolve. Segundo o I Ching: “Os opostos não se combatem entre si, mas se complementam. A diferença de nível cria um potencial que permite o movimento e a manifestação viva da energia." (Kaplan, 2002, p.60)  

Esse equilíbrio entre polaridades é um espaço em movimento, não é fixo. Não queremos reduzir as tensões entre polaridades de forma que não estejam mais em oposição e, consequentemente, percam a tensão criativa entre elas. O que buscamos na criação de espaços comunicativos é um equilíbrio vivo.

Encontrar um equilíbrio vivo é muito mais difícil. Ele parece ser o fundamento da criatividade e do desenvolvimento. Significa sustentar ambas as polaridades no auge de seu poder e significado, e retê-las por igual para que a tensão seja aumentada e a energia, imensa. (Kaplan, 2002, p.64)

O autor incentiva que experimentemos encontrar a riqueza do que está no centro, abraçando a triplicidade ao invés da dualidade. Experimento, então, buscar o espaço liminar entre os paradoxos de Wicks e Reason (2009) na prática de se criar espaços comunicativos. 

Explorando qualidades de facilitação de espaços comunicativos

Fonte: elaboração própria com base nos paradoxos de Wicks e Reason (2009)

Cultivar a prática de habitar esse espaço liminar é um exercício que requer constante atenção e reflexão a respeito das nossas preferências individuais e tendências de caminhar para um dos extremos de cada polaridade. Se trago para minha consciência que sou uma pessoa que prefere ordem e previsibilidade, posso buscar abrir espaço para a desordem e para o imprevisto nos processos participativos em que participo. Incentivar essa reflexão no grupo também pode contribuir para que encontremos um equilíbrio vivo entre as diferentes personalidades, preferências e necessidades.

Notas

  1. Texto original em inglês: These safe communicative spaces are carefully thought-out environments of mutual support and empathy in which people, who might otherwise feel threatened by sharing their knowledge and experience with others, can feel free to express themselves. (Pimbert e Wakeford, 2003, citados por Wicks & Reason, 2009, p. 251)

  2. Texto original em inglês: “these spaces for participation are not neutral but are themselves shaped by power relations, which both surround and enter them” (Cornwall, 2002, citada por Gaventa, 2006, p. 26).
    D. Greenwood & Levin, 2007a, 2007b

  3. Wicks e Reason nomeiam esse paradoxo de "Contracting" e se referem a entrar em acordo sobre propósito. Achei mais apropriado traduzir desta forma.

  4. (Arieli et al., 2009)

Referências 

Arieli, D., Friedman, V. J., & Agbaria, K. (2009). The paradox of participation in action research: Http://Dx.Doi.Org/10.1177/1476750309336718, 7(3), 263–290. https://doi.org/10.1177/1476750309336718
 

Gaventa, J. (2006). Finding the spaces for change: a power analysis. IDS Bulletin, 37(6), Brighton: Institute of Development Studies, 22–33.
 

Kaplan, A. (2002). Development practitioners and social process : artists of the invisible. Pluto Press.
 

Wicks, P. G., & Reason, P. (2009). Initiating action research: Challenges and paradoxes of opening communicative space. Http://Dx.Doi.Org.Ezproxy.Sussex.Ac.Uk/10.1177/1476750309336715, 7(3), 243–262. https://doi.org/10.1177/1476750309336715

Extremo
Explorando o espaço liminar
Extremo
Propósito pré-definido e rígido
Intenção pré-definida que oferece direcionamento e é fluida para ser transformada
Ausência de propósito - qualquer coisa cabe
Fronteiras rígidas, que isolam o grupo
Limites que definem o grupo, mas não o isolam de seu contexto
Ausência de fronteiras - qualquer pessoa faz parte
A participação é imposta – força pessoas que não querem ou não têm condições de participar
A participação é convidada intencionalmente e amplamente, mas não imposta
A participação não é incentivada amplamente – só as pessoas com condições mais favoráveis para participar se engajam
Liderança excessiva, que mina as contribuições do grupo
Liderança que cria condições para que a participação de todos floresça
Ausência de liderança - espero que o grupo tome iniciativa sobre qualquer coisa
Ansiedade não é tolerada
Há espaço para que a ansiedade seja expressa e contida
A ansiedade toma conta do processo
Ordem - nada pode sair do planejado
Caórdico - há estruturas que norteiam e há espaço para criativamente sair delas
Caos - tudo é aceito a qualquer momento

Sobre a autora

Bruna Viana é facilitadora de processos participativos, com experiência em apoiar organizações de diferentes setores a criar colaboração entre atores relevantes e tomar decisões que considerem todos os seus impactos. Chevening Scholar atualmente cursando o mestrado em Power, Participation and Social Change no Institute of Development Studies - University of Sussex, Reino Unido. Bruna também é Amani fellow, tendo cursado o diploma de pós-graduação em Social Innovation Management do Instituto Amani. 

Sobre este site

Neste site, publico histórias sobre projetos relevantes nos quais estive envolvida em minha trajetória, além de conteúdos - reflexões, proposições e histórias - que julgo poderem inspirar olhares mais conscientes e sustentáveis sobre as formas como nos relacionamos, produzimos, consumimos, vivemos. Desejo que o que me alimenta o pensamento possa gerar ideias em você também. Se algo que você encontrar aqui te der vontade de conversar mais, me escreva em brunaviafre@gmail.com.

Inscreva-se para receber novos conteúdos.

Contato recebido, obrigada!

bottom of page